quarta-feira, 3 de março de 2010

leituras poéticas: narrativas em São Gonçalo Beira Rio.


Os dois textos que seguem foram produzidos em 2008, e fazem parte da experiência qualitativa construída com a pesquisa em São Gonçalo Beira Rio. Textos que configuram leituras do e no cotidiano.


Se desejamos que nossa pesquisa seja respeitada do ponto de vista histórico, é preciso que evitemos usar de forma superficial a língua destes atores em nossa próprias explicações (LATOUR, 1994).



o tecido temporal

O Cuipé delineia o barro, faz junções contundentes, como a expressão do peso, da força em se levantar. A cerâmica ganha altura, ganha espessura e uma pele lisa. Cada instrumento é uma estratégia, um fazer diante, e junto ao barro, que tem na conseqüência mundo, a coisa cerâmica. O silêncio é ouvido.

Cada casa traz seu reservatório de instrumentos, são os mesmos, as funções também. Alguém conta para alguém, todos ficam sabendo, um novo instrumento aparece. A noticia é espalhada, corre por linhas invisíveis do lugar, a cerâmica exibe maior força, é pertinente como manifesto e resistência. Uma arma revestida de barro, protege, sorri para si, e tenta conversar como de fora. Os conflitos aparecem.

A esponja molha com água a peça que vai se formando. Um ponto conhecido é alcançado, agora o barro prossegue por mãos de silêncio, amassada pelo barro, pelo fogão a lenha, a inchada e por imagens novas (conceitos e aviões). Água, barro e pele. Figuras que compõe uma estética da natureza, esta figura performática, de tecnologia e de sangue que escorre como vida pulsante. A natureza não é pura. É um vivido conflitante, vida para os mais íntimos.

O Cuipé hoje é de plástico (retirado do capacete automobilístico), ontem era de cabaça. O plástico dura mais. O tempo é mais veloz. O mercado volta os olhos para a cerâmica, ou o que dizem ser tradicional, um novo movimento se forma. Rostos alegres e tristes constroem uma paisagem subjetiva (desejo-crença, para os deleuzianos). O acabamento da peça é feito pela tampa de caneta marca texto. A cerâmica pronuncia uma voz que dialoga com o de fora. Uma expressão de como este lugar hoje se movimenta, uma família com novos vizinhos, alguns gostam, outros não, mas vem a necessidade da comunicação. Valores inflam o peito de muitos, e escurece a visão por raiva de outros. Estão cansados da exploração. Hoje dizem mais não dizem, como armamento no plano da língua (fala cotidiana com o “outro”).


Yan Chaparro - 2008


corpos que dançam

O barro é pintado com o Tauá, sua coloração avermelhada ou branca, permite um colorido particular, a cerâmica lembra coisas que acontecem no cotidiano, como um baile, como os bichos, como a casa ou mesmo como a pessoa dali. Quando alguém constrói uma peça, o corpo se contorce, seu movimento fica preenchido por dizeres manuais, para a permissão de algo como estado de coisa.

A cerâmica fica ao lado de uma pessoa do lugar, a semelhança é nítida, quase uma simetria, não aparentemente física, mais de desejo, de crença, de dizer sobre o movimento feito, de habitar. Lugar que habita o sujeito, como um diálogo que se movimenta na constância da modificação e da repetição. A cerâmica ganha uma vida significante, muitas mãos passam por ela, uma família inteira. Fica pronta, o personagem reage a sua concretude, o sentido de se contorcer é sinuoso, o movimento é como uma dança espontânea, “o barro sou eu” é aquilo que enxergo nos olhos do outro, e de um eu que é parecido comigo (me afirmo como um irmão), mesmo sendo diferente.

Os olhos são receosos. Cada afirmativa é camuflada como uma rasteira, lembrando uma ingênua pergunta (astucia), o sorriso aparece pela mesma concretude do personagem. O prazer é real, a ironia e artimanha também. As mãos, quando a cerâmica esta sendo criada, lembram passos que vão de um lado para o outro, com objetivos que se encontra (faz algo importante), o suspiro é inevitável, e a fala é o final, na verdade o amanhã e o ontem ao mesmo tempo, como imagens cortantes.

As casas não possuem muros. A dança não é inteira pela frente, os movimentos levantam uma poeira, que escondem imagens do corpo que também dança. Talvez mais alucinante e denso. E às vezes estas imagens aparecem junto a outras, quando é necessário. A cerâmica vem de muito tempo, não por um aspecto linear, mas por um dizer inventado, o tempo é como uma voz bem pronunciada ao entendimento de quem quer ouvir, às vezes é como um grito movido por um silêncio fatal. Lembro do nome resistência. O tempo é um jogo político, é a re-significação constante da memória, esta que coloca os pés no chão.

Um dia me perguntaram “porque você escreve sujeito-lugar?” demorei a responder, pois não sabia. Um dia encontrei a mesma voz que me perguntou. Falo sujeito-lugar, pois me refiro a um sujeito que está diluído ao mundo que o envolve, e corta a todo instante a pele deste, sabendo que o sujeito também corta a pele do mundo. A dança que vejo na cerâmica, a imagem que trago, diz sobre uma dança, relação interpessoal comunitária para uns. Cerâmica que é a construção de objeto, que é fala de e por um lugar, pois ao construir um objeto, esta se construindo no mundo, e este objeto, o ajuda a construir sua imagem neste mundo, um suporte talvez. Mas sim, uma arte. Sujeito.


Yan Chaparro - 2008